Porque os homens são humanos, porque o tempo nem sempre é justo, porque a literatura portuguesa por vezes se esquece dos nomes que melhor a personificaram, deixo aqui uma homenagem de Eugénio de Andrade a Vitorino Nemésio. Foi escrita alguns anos depois da sua morte, mas continua muito actual, já que, longe das ilhas, a obra de Nemésio continua muito desconhecida.
«A VITORINO NEMÉSIO,
ALGUNS ANOS DEPOIS
Ninguém te lê os versos, tão admiráveis
alguns, e a prosa não tem muitos leitores,
embora todos reconheçam, mesmo os que
nunca te leram, que é magnífica.
A moda é o Pessoa, coitado: dá para tudo;
e a culpa é dele, com aquela comovente
incapacidade para ser ele próprio.
De nada lhe serviu ter dito e redito
que a fama era para as actrizes.
Que vocação de carneiro têm as maiorias:
não há fúfia universitária ou machão
fardado que não diga que a pátria
é a língua ou a puta que os pariu.
Não, contigo, isso não pegou. Durante anos
e anos arrumaram-te na prateleira:
eras o Cavaleiro das Tristes Figuras.
Conversão ao catolicismo, fretes ao estado
novo, prémios do sni não ajudavam muito
a que te lessem, além de haver outros poetas
a festejar, por sinal bem medíocres, mas
«democratas
convictos», coisa que dizem que não foste.
Isto de morrer pela pátria não é para
todos e tu, decididamente, para a morte
não tinhas nenhuma inclinação. Afinal,
além dos alciões a quem davas os olhos,
só tinhas versos, e alguns bem maus,
coisa aliás de pequeníssima importância,
como exemplarmente, depois de morto, provou
Pessoa, que está, como se sabe, no paraíso.
Coitado, pensava ter tempo para pôr ordem
na arca, mas a morte veio antes da hora.
Contigo ao menos isso não aconteceu,
bebias menos, pudeste arrumar a casa.
Nada disto importa já, e de resto
que lêem esses que lêem quando lêem?»
Eugénio de Andrade, 1983
homenagens e outros epitáfios, in Poesia