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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Não há botox que disfarce este Cantagalo!

Hotel do Cantagalo (Foto: LBulcão)

«Depois de me ter espraiado pelos mares do canal Faial-Pico, onde fui nascida e criada, encerrei as minhas férias na Terceira, uma ilha que aos poucos se tem vindo a tornar também minha, por força de laços familiares que aqui me vão trazendo cada vez mais frequentemente. Só neste último ano passei por cá várias vezes e não posso negar que em todas elas me senti em casa, mesmo quando a bruma insistia em esconder o horizonte, negando-me o prazer de saborear a proximidade dos meus vizinhos de infância, São Jorge e Pico.

Seja como for, de viagem para viagem, fui-me deixando apaixonar por esta terra de bravos costumes e farras imensas, onde a folia parece ter a energia do magma e a paz a delicadeza de um néctar inebriante. De mansinho, muito de mansinho, também esta ilha tem vindo a entranhar-se dentro de mim, mostrando-me o que os olhos não alcançam e oferecendo muito mais do que eu esperava. No mapa desta estranha geografia, reencontrei rostos da minha infância e recuperei amizades que julgara soterradas nas ruínas do tempo. E, como se isso não fosse suficiente, ainda me deixei encantar pelos prazeres terceirenses, que me vão arrebatando de forma diferente a cada viagem.

Podia continuar, parágrafo atrás de parágrafo, a descrever os dias que tenho vivido por aqui, perdida por entre a intensidade da maresia e achada perante o peso secular da história que se respira nas fachadas coloridas. Deambular pelas ruas de Angra já se tornou um dos meus passeios preferidos nas noites mais serenas, mas a verdade é que não há bela sem senão. E o que podia ser uma rota perfeita pelo património cuidadosamente recuperado e preservado, ameaça tornar-se uma viagem a duas velocidades, que mistura um passado glorioso com um futuro monstruoso.

Talvez a palavra escolhida seja pesada, mas não consigo encontrar melhor forma de descrever o atentado urbanístico que vai crescendo na sala de visitas desta cidade-património, como se fosse uma planta invasora que ameaça tirar a vida às preciosidades endémicas. Refiro-me, obviamente, à mega-construção que está a desfigurar a face marítima de Angra do Heroísmo - o Hotel do Cantagalo.

Há muito que se adivinhava monstruosa esta frente de betão que se vai erguendo na cidade, pronta para reescrever a História de forma leviana. Mas confesso que a paragem prolongada das obras nos últimos meses me tinha feito acalentar a secreta esperança de que o bom senso dos nossos decisores vencesse a batalha.

Queria acreditar que a coragem e o orgulho do poder terceirense falariam mais alto do que quaisquer outros interesses menos óbvios. No fundo, guardava a secreta esperança de que os responsáveis políticos tivessem bom senso e acabassem por travar o crescimento de tamanho "mamarracho" (que me perdoe o responsável pelo projecto, mas é efectivamente de um "mamarracho" que falamos).

Antes de mais, quero esclarecer que não tenho, nem nunca tive, qualquer preconceito contra a arquitectura moderna, muito pelo contrário. Nos jornais e revistas nacionais por onde tenho passado já escrevi e editei muitos textos rasgados de elogios a magníficas obras de arquitectura contemporânea. E, da mesma forma que sou capaz de avaliar devidamente as linhas de um edifício moderno ou futurista, também sei apreciar o nosso património e o seu enquadramento paisagístico, sobretudo quando falamos de uma cidade que é Património Mundial da UNESCO, um galardão que muito honra os Açores e o resto do País.

Contudo, ao ver que as obras recomeçaram no Hotel do Cantagalo, o que restava das minhas ilusões caiu por terra. Percebi que não há limites para a inconsciência humana. E que aquilo que os nossos antepassados demoraram séculos a construir não tem valor para quem hoje vai gerindo a cidade, de costas voltadas para o futuro, sem réstia de pudor ou qualquer consciência de estar a destruir um legado de valor incalculável.

Se a construção da marina de Angra conseguiu trazer muita graça às faces rosadas da cidade-património, já este hotel, pelo contrário, só serve para lhe evidenciar os seus pecados mortais, cavando-lhe rugas eternas. E não há botox que disfarce este Cantagalo!»

Lídia Bulcão, in Diário Insular, 23/10/2010

sábado, 23 de outubro de 2010

Uma noite que valeu a pena!


O Experimentar Na M'Incomoda (LBulcão)

 «Quando o faialense Pedro Lucas foi chamado ao palco do Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), no último domingo, para receber uma Menção Honrosa pelo projecto “O Experimentar Na M’Incomoda”, o seu rosto espelhava o que a maioria dos ilhéus presentes na entrega dos Prémios Megafone/João Aguardela haveria de sentir quando o espectáculo terminou: a sensação de que a noite soube a pouco.

Por mais que saibamos que o pouco por vezes é muito (e neste caso foi mesmo IMENSO), ainda assim não é fácil esconder o bocadinho de desilusão que nos fica na alma, tão intensamente exposta depois de ver e ouvir as nossas raízes açorianas celebradas numa das mais importantes salas de espectáculos do País.

O Pequeno Auditório do CCB, em Lisboa, estava pejado de “habitués” da música profundamente portuguesa, desde Mafalda Veiga a Luís Varatojo, passando por muitos outros nomes menos mediáticos e igualmente importantes. Mas o ar que se foi aspirando ao longo do espectáculo era bem mais do que apenas português: era também ilhéu, intensamente ilhéu.

Embora o primeiro nomeado da noite fosse um quarteto transmontano de som mirandês, os Galandum Galundaina, os outros dois nomeados para a primeira edição deste prémio eram projectos açorianos, nascidos e criados a partir do Faial.

Bandarra (LBulcão)
Dos três, os Bandarra, escolhidos pela sua “invulgar capacidade de misturar instrumentos tradicionais” e “sons de festa” com “letras profundas”, eram talvez os mais conhecidos entre nós e até os que arrecadaram mais palmas do público presente no CCB.

Contudo, foi O Experimentar Na M’Incomoda, de Pedro Lucas, que mais surpreendeu, conseguindo arrecadar uma Menção Honrosa ao mostrar-se herdeiro do verdadeiro espírito Megafone, o projecto mais alternativo do músico João Aguardela, que a maioria conheceu como líder dos Sitiados ou pela participação no projecto A NAIFA.

Nomeado pela sua “surpreendente criatividade” na reinvenção da tradição oral, o faialense Pedro Lucas conseguiu impressionar o júri ao vestir com sons electrónicos e contemporâneos músicas açorianas como “As Ilhas de Bruma” ou “Rema” e vozes como as de Zeca Medeiros ou Carlos Medeiros.

Já o Prémio principal foi para os Galandum Galundaina, com quem João Aguardela tinha uma especial afinidade – havia-lhes prometido participar no seu último disco, uma promessa que a morte não o deixou cumprir e que a atribuição deste Prémio vem de certa forma corrigir. 
Os nomeados para o Prémio Megafone Música (LBulcão)
Para muitos açorianos, provavelmente nem interessava quem ganhava o Prémio - desde que fosse um dos projectos ilhéus, e de preferência os dois. O nosso bairrismo é assim, e nisso não somos diferentes do resto do País. O que é nosso toca-nos sempre mais, mesmo que não seja verdadeiramente melhor.

Não vou aqui fazer nenhum parêntesis para debater a questão que muitos gostariam de ver respondida. A tal dúvida eterna do “será que não eram?”. Não precisamos entrar por aí, até porque esse era o papel do júri. Na verdade, nem interessa se eram ou não eram, ou se podiam ter sido.

Depois da noite de domingo, o que interessa é que dois projectos com raízes faialenses foram escolhidos de entre dezenas de outros candidatos de todo o País e ficaram entre os três melhores, com direito a edição e divulgação do seu próximo álbum em todas as plataformas FNAC. O que interessa é que tanto o Pedro Lucas como os Bandarra conseguiram pegar naquilo que é nosso e criar algo de novo. O que interessa é que não precisaram ignorar as tradições antigas, nem as raízes açorianas, para conseguir brilhar num mundo difícil e cada vez mais exigente como é o da música portuguesa. O que interessa é, sobretudo, ver que o mar que nos rodeia não é uma fronteira intransponível e que o talento ilhéu não pode, nem deve, ficar preso na ilha. E, só por isso, a noite de domingo valeu mesmo a pena.»

Lídia Bulcão, in Tribuna das Ilhas, 23/10/2010

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A força de um Vulcão à porta de casa


Lídia Bulcão, in jornal Meia-Hora, de 27/09/2007

A propósito da passagem dos 53 anos sobre a primeira erupção do Vulcão dos Capelinhos, deixo aqui o recorte de uma crónica publicada há três anos no extinto jornal Meia-Hora. À excepção do número de anos, as minhas palavras continuam hoje tão actuais como então. (Para ver o texto maior, basta clicar na imagem.)

sábado, 11 de setembro de 2010

Enfrentar as vergonhas e resgatar as glórias

Caminhando pela avenida numa destas noites maravilhosas que o final de Verão ainda nos vai proporcionando, dei por mim a relembrar as palavras de um turista amigo: «Isto é, ou não é, uma cidade portuária?» A pergunta trazia água no bico. «É que não vejo "casas de meninas" em lado nenhum!», dizia ele, com um sorriso maroto, argumentando que qualquer cidade portuária que se preze tem, ou teve, a sua casa de "meninas".


Goste-se ou não, a verdade é que ele tinha a sua razão. E se hoje não se conhece qualquer casa desse género na cidade, a verdade é que em tempos idos a Horta terá tido as suas “meninas” circulando pelos bares da noite ou escondidas no velho “Barco do Amor”, entre outros locais menos próprios para a moral e os bons costumes de qualquer terra que se preze.


Hoje, olhando para as fachadas da nossa cidade, não há nada que nos faça ecoar esse tempo em que os marinheiros escalados na cidade frequentavam ruas ou casas consideradas menos próprias. Contudo, isto não significa que não existiram, mas apenas que se há coisa que a Horta soube bem esconder foi esse lado menos glamoroso de uma cidade portuária.


Até aqui, menos mal. O problema é que os mesmos que deixaram cair no esquecimento o lado menos próprio de uma cidade portuária, estão também a deixar desaparecer o outro lado desse passado, bem mais rico e merecedor do olhar atento de todos quantos nos visitam, mas cada vez mais enterrado no esquecimento dos anos e das vozes que vão desaparecendo de entre os vivos.


Se ainda houver dúvidas, falo das histórias e dos feitos de uma cidade que foi grande muitas vezes e quase sempre graças ao mar, desde o tempo das caravelas aos navios baleeiros, passando pelos cabos submarinos e pelos hidroaviões, sem esquecer os muitos exércitos que nela descansaram as suas frotas marítimas ou até mesmo os milhares de iates que a escalam ano após ano. Falo do passado de uma cidade que soube usar o mar para ultrapassar as suas fronteiras e as dos outros, mas não está a saber cuidar do seu património marítimo-cultural para nele edificar um futuro de raízes sólidas.


Ainda há pouco tempo o arqueólogo José Bettencourt, do Centro de História de Além Mar da Universidade Nova de Lisboa, dizia nas páginas do “Tribuna das Ilhas” que os vestígios arqueológicos da baía da Horta “são únicos a nível nacional”, referindo-se a um achado recente que se calcula remontar ao naufrágio de um navio inglês no início do século XVIII. E, a propósito, o arqueólogo lembrava o óbvio: que a cidade da Horta precisa, e urgentemente, de um discurso museográfico ligado ao mar.


«À excepção da fábrica da Baleia, não conheço na Horta nenhuma instituição museográfica ou com exposições sobre o passado marítimo da cidade, e acho que é uma falha em termos de produto, quer para consumo interno, quer para vender para o exterior», afirmava então o arqueólogo. E as suas palavras fazem tanto sentido que não podem ser ignoradas, sobretudo por quem tem o dever de preservar e divulgar a cultura que é de todos nós.


Não quero aqui discutir questões políticas, técnicas, orçamentais, ou outras que tais em torno da criação de um futuro museu (ou museus) ligado ao passado marítimo da cidade da Horta, mas apenas deixar mais um alerta para que a oportunidade não volte a ser desperdiçada.


O caminho para o futuro pode e deve ser feito a partir do passado, mas antes é preciso reconhecer a sua importância e mostrar disposição para o preservar. Quando estes dois factores finalmente se conjugarem, tudo o resto será uma questão de pormenor.


À semelhança do que acontece com o património geológico e ambiental do Faial, também o seu património marítimo está recheado de feitos dignos de registo e edifícios com história, que merecem a devida preservação e divulgação, contribuindo inclusive para contextualizar a existência de uma cidade que pelo mar se tornou “a maior cidade pequena do mundo”, como em tempos lhe chamou o poeta Pedro da Silveira.


E se pelo caminho tivermos também de enfrentar algumas vergonhas e revelar aos nossos filhos onde ficavam as casas de “meninas” desta mítica cidade portuária, será certamente um baixo preço a pagar pela certeza de que os nossos verdadeiros feitos vão ficar de herança às gerações futuras e a todos os visitantes que um dia ousem desembarcar na Horta.


Lídia Bulcão, in Tribuna das Ilhas, 10/09/2010