«Percorro a avenida de lés a lés, com a velocidade que o pensamento permite e a saudade que o coração aguenta. Já lá vai quase um ano que não lhe sinto a calçada, nem lhe gabo a vista. Mas nem por isso deixei de lhe cheirar o ar de maresia, de lhe ouvir o estalar das ondas no paredão, ou de me arrepiar com os salpicos daquele mar.
Mesmo de olhos fechados, consigo sentir o rossio no ar e o salitre na pele. Mesmo de olhos fechados, consigo saborear o salgado dos lábios, que incessantemente pedem água para matar a sede. Só que esta sede não se mata apenas com água, porque a doçura do líquido não extingue a sagacidade da alma, que não dorme sequer a pensar no que o corpo lhe pede.
Mas será que pode o corpo pedir o que a distância não deixa ver? Pode a alma sofrer com a ausência do que não tem? Não só pode, como exige, como anseia desesperadamente. Como se disso dependesse a sua existência. Como se todo o mundo não bastasse para a saciar. Como se a força do mar sugasse a seiva do corpo e dele fizesse uma pedra de sal, pronta a desfazer-se ao mais pequeno estremecer.
Agora, de olhos abertos, percorro o Tejo, o Sado, o Douro, o Sena e o Tamisa. De olhos abertos, vejo o mar de Sesimbra, de Setúbal, do Algarve, do Mediterrâneo e até do Adriático. Mas, por mais que abra os meus olhos e desperte os mais profundos sentidos, não consigo captar o que os meus olhos vêem quando estão fechados, pairando sobre a marginal dessa inquieta avenida, que insiste em mergulhar no mar todos os meus pensamentos e vontades de ser.»
Lídia Bulcão, in jornal Avenida Marginal, 4/7/2008
1 comentário:
Quantas vezes percorremos nós essa avenida ao anoitecer, cantando sapateias e tranças pretas, ao sabor de um gelado do Volga... q saudades!
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