«Sentada por entre uma conversa de saudade, uma amiga picoense constatava o seu espanto pela última moda nas ilhas do Canal. “Agora, toda a gente tem um barco!”, dizia ela, parecendo incrédula por se gastar tanto dinheiro numa vedeta ou num semi-rígido. E tudo só para ir dar uma voltinha ali pela costa ou ir à pesca ali ao largo.
Para a minha amiga, economista de formação, esta moda é apenas mais um sinal do consumo desenfreado de uma sociedade cada vez mais mergulhada em dívidas e muito pouco preocupada em pagá-las.
À primeira vista, o raciocínio dela pareceu-me lógico. Não faz muito sentido investir tanto dinheiro num barquinho para usar só ao fim-de-semana, especialmente quando, na maior parte dos casos, ainda se está a pagar as prestações da casa e do carro ao banco.
O argumento, dizia eu, parecia-me lógico, mas só por si não me convenceu e fiquei a matutar naquilo. Afinal, também eu, que nunca fui de seguir modas, há muito que sonho ter um barquinho que me leve por esse mar adentro, em busca de aventuras e saudades. Claro que nunca passou de um sonho, como muitos outros que nos vão alimentando os desejos e fazendo seguir com a vida. Mas ainda assim é um sonho, que cada vez mais me parece ter origens na ilha que há dentro de mim.
Desconfio mesmo que há algo mais por detrás desta dita moda, que rapidamente tem enchido os ancoradouros das marinas açorianas. E quanto mais penso nisso, mais tenho a certeza que não é por acaso que todo o ilhéu alimenta essa ânsia de possuir um barco só seu.
Ainda que nos dias de hoje poucos deixem a ilha por mar, o caminho marítimo continua a ser a estrada que todos os ilhéus desejam trilhar. E aí o barco é, sem dúvida, o elo que faz a ponte com o mundo exterior.
Não digo que o barco represente apenas “a vontade encapuçada de partir, de cortar as amarras que prendem o açoriano ao cárcere ilhéu”, como lhe chamou Carla Silva Cook, no seu livro “O Menino Escreve – Infância e Adolescência no Universo Nemesiano”. Embora sinta que um simples barco pode ser a viagem para outros caminhos, não o vejo apenas como um “modo de apartamento da ilha”, ainda que “também de regresso possível”.
Mais do que uma forma “de cortar as amarras” que o prendem à ilha, acho que o barco é uma outra forma de as reforçar. Não porque permite desfrutar intensamente dos privilégios do mar, mas sobretudo porque dá ao ilhéu a liberdade de escolha. É como se ter um barco ancorado no porto equivalesse a ter uma porta de emergência, daquelas que nunca usamos mas por onde sabemos que podemos sair a qualquer momento.
O ilhéu de hoje continua a não querer estar preso no isolamento da ilha, mas também não a quer abandonar. Prefere antes ter um barco e sentir-se livre. Não de partir, mas de ficar.»
Lídia Bulcão, in jornal Avenida Marginal, 23/10/2008
Crédito Foto: @LBulcao
1 comentário:
Não podia deixar de comentar...também eu tenho a ilha dentro de mim...e o teu ultimo parágrafo define-me na perfeição...talvez porque ainda não tenha cortado as amarras e continue prisioneira da minha liberdade !
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