domingo, 24 de junho de 2007

Olhar o rio e fingir que é mar



«Confesso que, às vezes, quase me esqueço do poder das ilhas, como se essas raízes estivessem muito enterradas, longe da vista e, portanto, longe do coração, como diziam os antigos. Mas basta-me atravessar o rio Tejo para que tudo venha à superfície. Atravessar aquele rio é como reencontrar a sensação de ser ilhéu, deixando a alma encher-se com o espaço em que a terra acaba e a água começa.

Em Lisboa, a cidade que não se cansa de agitar as mentes e os espíritos, o ilhéu facilmente perde a noção de si. Entre as pedras e o movimento constante, abafa os sentimentos que lhe apertam o peito e esquece as coisas boas que lhe construíram a consciência.

Na cidade ofuscada pela sua própria luz, o ilhéu renasce ao olhar o rio e fingir que é mar. Mesmo que a cor e o cheiro sejam outros, mesmo que a outra margem nunca mais acabe de largura, mesmo que as pontes cortem a imaginação de quem quer ver a insularidade que sempre busca no horizonte.

Na agitação diária de uma vida irrequieta, apenas o rio pode devolver a tranquilidade de que um verdadeiro ilhéu se alimenta. Só assim a alma abafada consegue saborear de novo a vida que parecia ter esquecido.»
Lídia Bulcão, in Jornal dos Açores, 11/07/2005

2 comentários:

Anónimo disse...

Querida Li,

Ai...como expressas tão bem aquilo que sinto. É um gosto ler as tuas palavras!

Beijokas grandes,

Carla Sarmento

RD disse...

Acredito minhas lindas. Eu nunca me quero separar do meu Mar.