«Ficavas sentado nas pedras da praia como quem espera um sinal divino para despertar para a vida. Permanecias imóvel, olhando as ondas, como se esperasses um navio de carga preciosa ou uma alma generosa que te arrancasse daquela dormência quase etérea.
Olhando de repente, parecias uma casca de molusco deixada para trás, pousada ao acaso nas areias da vida, aguardando que a maré te levasse de vez. Olhando uma segunda ou terceira vez, com persistência e atenção, notava-se que os teus lábios mexiam. E quando a brisa colaborava, ouviam-se sons e murmúrios arrastados pelo vento, ainda que me fugissem mais do que chegavam, sem que percebesse sequer o que diziam.
Conheci-te assim toda a vida e sempre pensei que falavas com a tua própria existência, como se procurasses no passado as parcelas que faltavam para conseguires acertar as contas do presente. Como se conversando contigo próprio procurasses ouvir o que te vai na alma, de modo a torná-la mais leve e suportável.
Ontem, juraram-se que não. Juraram-me que não falavas sozinho, nem carregavas pesos mortos nessa alma de outros tempos. Que se os teus lábios se mexiam em frente ao mar é porque cantavam. E que esses murmúrios não são mais do que melodias de outros tempos e sons que já não se fazem.
Mas porque cantaria um velho perdido em frente ao mar? Porque ficaria horas a olhar o que ninguém parece ver, alheado do mundo inteiro e das vidas que o rodeiam? Respondem-me que és um homem agradecido à vida que existe debaixo de água e que já nada consegues fazer sem repetir os sons que lá ouviste cantar.
Pormenores, ninguém os sabe, ninguém se atreve a revelar. Mas circulam de boca em boca relatos de uma tragédia que não chegou a ser, do dia em que caíste ao mar e sobreviveste para dizer. Quem te ouviu primeiro já cá não está, mas quem ficou sempre vai contando que foi obra de uma sereia desconhecida. E que desde que te salvou passas os dias assim, embevecido a cantar a sua essência perdida.
De repente percebi que a vista não me enganara. Enquanto trilhavas a voz e acertavas o compasso com o mar, esperavas de facto que o tempo te devolvesse uma existência roubada. E que a tua alma generosa é uma sereia perdida, por quem te apaixonaste sem saber, numa clarividência da vida.»
Olhando de repente, parecias uma casca de molusco deixada para trás, pousada ao acaso nas areias da vida, aguardando que a maré te levasse de vez. Olhando uma segunda ou terceira vez, com persistência e atenção, notava-se que os teus lábios mexiam. E quando a brisa colaborava, ouviam-se sons e murmúrios arrastados pelo vento, ainda que me fugissem mais do que chegavam, sem que percebesse sequer o que diziam.
Conheci-te assim toda a vida e sempre pensei que falavas com a tua própria existência, como se procurasses no passado as parcelas que faltavam para conseguires acertar as contas do presente. Como se conversando contigo próprio procurasses ouvir o que te vai na alma, de modo a torná-la mais leve e suportável.
Ontem, juraram-se que não. Juraram-me que não falavas sozinho, nem carregavas pesos mortos nessa alma de outros tempos. Que se os teus lábios se mexiam em frente ao mar é porque cantavam. E que esses murmúrios não são mais do que melodias de outros tempos e sons que já não se fazem.
Mas porque cantaria um velho perdido em frente ao mar? Porque ficaria horas a olhar o que ninguém parece ver, alheado do mundo inteiro e das vidas que o rodeiam? Respondem-me que és um homem agradecido à vida que existe debaixo de água e que já nada consegues fazer sem repetir os sons que lá ouviste cantar.
Pormenores, ninguém os sabe, ninguém se atreve a revelar. Mas circulam de boca em boca relatos de uma tragédia que não chegou a ser, do dia em que caíste ao mar e sobreviveste para dizer. Quem te ouviu primeiro já cá não está, mas quem ficou sempre vai contando que foi obra de uma sereia desconhecida. E que desde que te salvou passas os dias assim, embevecido a cantar a sua essência perdida.
De repente percebi que a vista não me enganara. Enquanto trilhavas a voz e acertavas o compasso com o mar, esperavas de facto que o tempo te devolvesse uma existência roubada. E que a tua alma generosa é uma sereia perdida, por quem te apaixonaste sem saber, numa clarividência da vida.»
Lídia Bulcão, in jornal Avenida Marginal n.6, 30/04/2010
1 comentário:
Muito bem, belo conto, parabens
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