Hotel do Cantagalo (Foto: LBulcão) |
«Depois de me ter espraiado pelos mares do canal Faial-Pico, onde fui nascida e criada, encerrei as minhas férias na Terceira, uma ilha que aos poucos se tem vindo a tornar também minha, por força de laços familiares que aqui me vão trazendo cada vez mais frequentemente. Só neste último ano passei por cá várias vezes e não posso negar que em todas elas me senti em casa, mesmo quando a bruma insistia em esconder o horizonte, negando-me o prazer de saborear a proximidade dos meus vizinhos de infância, São Jorge e Pico.
Seja como for, de viagem para viagem, fui-me deixando apaixonar por esta terra de bravos costumes e farras imensas, onde a folia parece ter a energia do magma e a paz a delicadeza de um néctar inebriante. De mansinho, muito de mansinho, também esta ilha tem vindo a entranhar-se dentro de mim, mostrando-me o que os olhos não alcançam e oferecendo muito mais do que eu esperava. No mapa desta estranha geografia, reencontrei rostos da minha infância e recuperei amizades que julgara soterradas nas ruínas do tempo. E, como se isso não fosse suficiente, ainda me deixei encantar pelos prazeres terceirenses, que me vão arrebatando de forma diferente a cada viagem.
Podia continuar, parágrafo atrás de parágrafo, a descrever os dias que tenho vivido por aqui, perdida por entre a intensidade da maresia e achada perante o peso secular da história que se respira nas fachadas coloridas. Deambular pelas ruas de Angra já se tornou um dos meus passeios preferidos nas noites mais serenas, mas a verdade é que não há bela sem senão. E o que podia ser uma rota perfeita pelo património cuidadosamente recuperado e preservado, ameaça tornar-se uma viagem a duas velocidades, que mistura um passado glorioso com um futuro monstruoso.
Talvez a palavra escolhida seja pesada, mas não consigo encontrar melhor forma de descrever o atentado urbanístico que vai crescendo na sala de visitas desta cidade-património, como se fosse uma planta invasora que ameaça tirar a vida às preciosidades endémicas. Refiro-me, obviamente, à mega-construção que está a desfigurar a face marítima de Angra do Heroísmo - o Hotel do Cantagalo.
Há muito que se adivinhava monstruosa esta frente de betão que se vai erguendo na cidade, pronta para reescrever a História de forma leviana. Mas confesso que a paragem prolongada das obras nos últimos meses me tinha feito acalentar a secreta esperança de que o bom senso dos nossos decisores vencesse a batalha.
Queria acreditar que a coragem e o orgulho do poder terceirense falariam mais alto do que quaisquer outros interesses menos óbvios. No fundo, guardava a secreta esperança de que os responsáveis políticos tivessem bom senso e acabassem por travar o crescimento de tamanho "mamarracho" (que me perdoe o responsável pelo projecto, mas é efectivamente de um "mamarracho" que falamos).
Antes de mais, quero esclarecer que não tenho, nem nunca tive, qualquer preconceito contra a arquitectura moderna, muito pelo contrário. Nos jornais e revistas nacionais por onde tenho passado já escrevi e editei muitos textos rasgados de elogios a magníficas obras de arquitectura contemporânea. E, da mesma forma que sou capaz de avaliar devidamente as linhas de um edifício moderno ou futurista, também sei apreciar o nosso património e o seu enquadramento paisagístico, sobretudo quando falamos de uma cidade que é Património Mundial da UNESCO, um galardão que muito honra os Açores e o resto do País.
Contudo, ao ver que as obras recomeçaram no Hotel do Cantagalo, o que restava das minhas ilusões caiu por terra. Percebi que não há limites para a inconsciência humana. E que aquilo que os nossos antepassados demoraram séculos a construir não tem valor para quem hoje vai gerindo a cidade, de costas voltadas para o futuro, sem réstia de pudor ou qualquer consciência de estar a destruir um legado de valor incalculável.
Se a construção da marina de Angra conseguiu trazer muita graça às faces rosadas da cidade-património, já este hotel, pelo contrário, só serve para lhe evidenciar os seus pecados mortais, cavando-lhe rugas eternas. E não há botox que disfarce este Cantagalo!»
Seja como for, de viagem para viagem, fui-me deixando apaixonar por esta terra de bravos costumes e farras imensas, onde a folia parece ter a energia do magma e a paz a delicadeza de um néctar inebriante. De mansinho, muito de mansinho, também esta ilha tem vindo a entranhar-se dentro de mim, mostrando-me o que os olhos não alcançam e oferecendo muito mais do que eu esperava. No mapa desta estranha geografia, reencontrei rostos da minha infância e recuperei amizades que julgara soterradas nas ruínas do tempo. E, como se isso não fosse suficiente, ainda me deixei encantar pelos prazeres terceirenses, que me vão arrebatando de forma diferente a cada viagem.
Podia continuar, parágrafo atrás de parágrafo, a descrever os dias que tenho vivido por aqui, perdida por entre a intensidade da maresia e achada perante o peso secular da história que se respira nas fachadas coloridas. Deambular pelas ruas de Angra já se tornou um dos meus passeios preferidos nas noites mais serenas, mas a verdade é que não há bela sem senão. E o que podia ser uma rota perfeita pelo património cuidadosamente recuperado e preservado, ameaça tornar-se uma viagem a duas velocidades, que mistura um passado glorioso com um futuro monstruoso.
Talvez a palavra escolhida seja pesada, mas não consigo encontrar melhor forma de descrever o atentado urbanístico que vai crescendo na sala de visitas desta cidade-património, como se fosse uma planta invasora que ameaça tirar a vida às preciosidades endémicas. Refiro-me, obviamente, à mega-construção que está a desfigurar a face marítima de Angra do Heroísmo - o Hotel do Cantagalo.
Há muito que se adivinhava monstruosa esta frente de betão que se vai erguendo na cidade, pronta para reescrever a História de forma leviana. Mas confesso que a paragem prolongada das obras nos últimos meses me tinha feito acalentar a secreta esperança de que o bom senso dos nossos decisores vencesse a batalha.
Queria acreditar que a coragem e o orgulho do poder terceirense falariam mais alto do que quaisquer outros interesses menos óbvios. No fundo, guardava a secreta esperança de que os responsáveis políticos tivessem bom senso e acabassem por travar o crescimento de tamanho "mamarracho" (que me perdoe o responsável pelo projecto, mas é efectivamente de um "mamarracho" que falamos).
Antes de mais, quero esclarecer que não tenho, nem nunca tive, qualquer preconceito contra a arquitectura moderna, muito pelo contrário. Nos jornais e revistas nacionais por onde tenho passado já escrevi e editei muitos textos rasgados de elogios a magníficas obras de arquitectura contemporânea. E, da mesma forma que sou capaz de avaliar devidamente as linhas de um edifício moderno ou futurista, também sei apreciar o nosso património e o seu enquadramento paisagístico, sobretudo quando falamos de uma cidade que é Património Mundial da UNESCO, um galardão que muito honra os Açores e o resto do País.
Contudo, ao ver que as obras recomeçaram no Hotel do Cantagalo, o que restava das minhas ilusões caiu por terra. Percebi que não há limites para a inconsciência humana. E que aquilo que os nossos antepassados demoraram séculos a construir não tem valor para quem hoje vai gerindo a cidade, de costas voltadas para o futuro, sem réstia de pudor ou qualquer consciência de estar a destruir um legado de valor incalculável.
Se a construção da marina de Angra conseguiu trazer muita graça às faces rosadas da cidade-património, já este hotel, pelo contrário, só serve para lhe evidenciar os seus pecados mortais, cavando-lhe rugas eternas. E não há botox que disfarce este Cantagalo!»
Lídia Bulcão, in Diário Insular, 23/10/2010
4 comentários:
Mau gosto em toda a linha e faz lembrar projectos exibicionistas de ditador terceiro-mundista.
E eu achava que tinha sido dura... eheh!
Infelizmente, não há botox que disfarce os inúmeros mamarrachos que poluem visualmente as nossas ilhas. Em S. Miguel temos vários!
Há-os um pouco por toda a parte neste nosso País há beira-mar plantado. Infelizmente!
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