«Ser natural de um lugar costumava significar ter nascido lá. Mas o mundo deu muitas voltas e com elas a legislação portuguesa, que agora nos dá a hipótese de escolher por naturalidade o lugar onde os pais vivem na altura do nascimento. Sei que esta definição legal é válida para efeitos de cidadania e todos os direitos a ela inerentes, mas pergunto-me se será válida para toda a vida e, sobretudo, para todas as vidas?
Olho à minha volta e vejo exemplos soltos que me fazem questionar tudo o resto. Conheço lisboetas nascidos e criados no Algarve que são mais alfacinhas do que muitos nascidos na Maternidade Alfredo da Costa. Conheço alentejanos criados em Cascais com mais amor pelas planícies do Alentejo do que alguns com sotaque bem cerrado. Conheço até açorianos que não nasceram nas ilhas, embora lá tenham crescido e deixado o coração.
Ter nascido num lugar não é, portanto, mais importante do que tê-lo experienciado, mas o que faz, na realidade, uma pessoa pertencer a um lugar? Poderá a geografia condicionar mais do que a cultura?
No sentido oposto, também não me faltam casos concretos. Conheço pessoas nascidas e criadas a duas ruas de mim que hoje me parecem ter vindo de realidades completamente diferentes, e a quem tenho até dificuldade em chamar conterrâneos. Conheço picoenses nascidos no Faial e faialenses nascidos no Pico. Tal como conheço continentais e estrangeiros que vivem na ilha, sentindo-se mais ilhéus do que muitos vizinhos.
Sei que Vitorino Nemésio dizia que os açorianos têm uma dupla natureza, moldada pela geografia e pelo mar. Mas será que a memória não nos molda tanto ou mais do esse mar, que nos arrepia a alma e amolece o coração? A pergunta-me cruza-me a alma vezes sem conta, mas talvez seja só eu, que continuo a sentir-me uma estranha na grande cidade, sempre em falta para com a ilha onde nasci.
Olho para o meu filho – continental para os açorianos e açoriano para os continentais – e pergunto-me até que ponto as raízes familiares e culturais de cada um de nós contam mais do que essa estranha geografia, que povoa os compêndios e o imaginário dos poetas. Olho para outras identidades, tão diferentes da minha, e ainda assim consigo encontrar semelhanças, feitas de amores e ódios, desejos e traumas, experiências e memórias. Mas olhando para o mapa da minha própria cidadania, não vejo senão a ilha dentro de mim, intensa e presente, por mais distância que o mar imponha entre nós.
Não sei, nem nunca soube, como se mede essa sensação de pertença a um lugar. Mas sei que, para mim, é como se os pés continuassem lá, enterrados naquela maresia em que tantas vezes limpei a alma. Não posso, por isso, ter outra naturalidade que não a cidadania da minha alma.»
Olho à minha volta e vejo exemplos soltos que me fazem questionar tudo o resto. Conheço lisboetas nascidos e criados no Algarve que são mais alfacinhas do que muitos nascidos na Maternidade Alfredo da Costa. Conheço alentejanos criados em Cascais com mais amor pelas planícies do Alentejo do que alguns com sotaque bem cerrado. Conheço até açorianos que não nasceram nas ilhas, embora lá tenham crescido e deixado o coração.
Ter nascido num lugar não é, portanto, mais importante do que tê-lo experienciado, mas o que faz, na realidade, uma pessoa pertencer a um lugar? Poderá a geografia condicionar mais do que a cultura?
No sentido oposto, também não me faltam casos concretos. Conheço pessoas nascidas e criadas a duas ruas de mim que hoje me parecem ter vindo de realidades completamente diferentes, e a quem tenho até dificuldade em chamar conterrâneos. Conheço picoenses nascidos no Faial e faialenses nascidos no Pico. Tal como conheço continentais e estrangeiros que vivem na ilha, sentindo-se mais ilhéus do que muitos vizinhos.
Sei que Vitorino Nemésio dizia que os açorianos têm uma dupla natureza, moldada pela geografia e pelo mar. Mas será que a memória não nos molda tanto ou mais do esse mar, que nos arrepia a alma e amolece o coração? A pergunta-me cruza-me a alma vezes sem conta, mas talvez seja só eu, que continuo a sentir-me uma estranha na grande cidade, sempre em falta para com a ilha onde nasci.
Olho para o meu filho – continental para os açorianos e açoriano para os continentais – e pergunto-me até que ponto as raízes familiares e culturais de cada um de nós contam mais do que essa estranha geografia, que povoa os compêndios e o imaginário dos poetas. Olho para outras identidades, tão diferentes da minha, e ainda assim consigo encontrar semelhanças, feitas de amores e ódios, desejos e traumas, experiências e memórias. Mas olhando para o mapa da minha própria cidadania, não vejo senão a ilha dentro de mim, intensa e presente, por mais distância que o mar imponha entre nós.
Não sei, nem nunca soube, como se mede essa sensação de pertença a um lugar. Mas sei que, para mim, é como se os pés continuassem lá, enterrados naquela maresia em que tantas vezes limpei a alma. Não posso, por isso, ter outra naturalidade que não a cidadania da minha alma.»
Lídia Bulcão, in Avenida Marginal nº3, 29/05/2009
4 comentários:
Obrigado Lídia por partilhares connosco sentimentos que nos tocam na alma e que na realidade, como tão bem descreves, fazem parte dela...
Beijinhos para ti e abraços para os teus "Homens" da família Carneiro&Silva.
Uma reflexão profunda de um tema que me toca e que faz parte das questões sobre o meu ego: faialense de sangue, por opção de residência e por gosto... canadiano de nascimento, por identificação de formas de pensar, por interesse na sua cultura e sede das primeiras memórias. afinal o que sou? não quero perder nenhuma destas referências!
Para mim, o importante são as coisas que encontro iguais em todos os lugares.
Por isso estou em casa em toda a parte.
Continental de nascimento e vivência, a Horta acolheu-me como um dos seus. E agora sou um pouco da Horta e a Horta é um pouco de mim.
Mais uma vez me "sinto" no que escreveste... E quantas vezes, tal como o geocruse, me pergunto, "afinal quem sou?".
Nascida no Faial, vivi 5 anos da minha infância (talvez os mais marcantes)no Canadá, regressei ao Faial,onde nunca me senti "home", para mais tarde me fixar definitivamente(?) em S.Miguel...Não me sinto pertencer a lugar nenhum, a única certeza que tenho é que sou "filha da ilha", e costumo dizer que sou uma cidadã do cosmos, e as minhas "raízes" são aéreas...
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