«Ainda a noite não tinha caído e já estava escuro como breu. Na rua, o silêncio era ocupado pelo barafustar das folhas secas e o estalar dos ramos caídos. Os pássaros havia muito que tinham já esvoaçado em direcção a solos mais quentes. Em redor, o anoitecer que poderia ser tranquilo era, contudo, pesado. Pesado e peganhoso, como uma humidade que não se consegue secar.
O ar estava tão denso que o termómetro poderia explodir a qualquer momento, mas não era só isso. A escuridão também parecia mais pesada, mais densa, mais disforme do que me habituara. Talvez porque as luzes da cidade pareciam estar demasiado longe e a lua perdera o seu reflexo no mar. Ali, no topo da serra e no meio do nada, os olhos eram as únicas lanternas disponíveis. E a alma uma espécie de baterias de carga única, com a capacidade para entrar em auto-gestão.
Saí do carro confiante. A noite tinha tudo para ser nossa. Não esperava, contudo, que um medo repentino se apoderasse de ti. Pior: não esperava que esse medo se transformasse em pânico e te roubasse a sanidade.
Naqueles dias, tudo o que procuravas era uma noite assim. Tranquila, silenciosa, isolada. Querias fugir do mundo que te perseguia, das inseguranças que carregavas, dos traumas que trazias por resolver. Fugias para não falar, para não enfrentar, para não teres de lidar contigo próprio.
Nos momentos mais intranquilos, ias até ao porto mais próximo e ficavas a ver os barcos, que pastavam no mar chão com a tranquilidade das coisas seguras. Por vezes, paravas na praia, tentando penetrar nos segredos da espuma, como se isso fosse descodificar todos os enigmas da tua alma. Perdias horas sem fim a olhar as vagas que se enrolavam e quebravam com sequências muito pouco lógicas e ainda menos seguras para quem se quedava à beira da areia, rondando o vai e vem da água revolta, gelada de perigo.
Quando te sentias reconfortado, voltavas a casa. Não mais tranquilo como se esperava, mas mais ansioso, como se tivesses gasto a energia que te consumia a alma. Voltavas para recarregar o corpo durante o sono e de manhã despertavas novamente envolto nos dilemas de sempre.
Na rua, quem se cruzava contigo habitualmente costumava deslumbrar-se com a tua facilidade expressiva, com a tua simpatia, com as tuas tiradas inesperadas, sem contudo desconfiar que por detrás do sorriso brilhante estava uma face cravada de tormentas.
Naquela noite, as tormentas estavam pesadas como nunca e tu desesperavas. Querias fugir de ti próprio e a solução imediata era subir ao ponto mais alto que tinhas por perto. Chamaste-me então, e eu não hesitei. Deixei os amigos a jantar, entrei no carro e fui ter contigo.
Mal entraste no carro, segui pela estrada que sabíamos ser a mais segura. Àquela hora, como já era de esperar, não havia vivalma na rua. Nem naquela, nem em nenhuma das outras ruas que percorremos. Naquele momento, eram apenas longos pedaços de alcatrão, sem luz, sem gente, sem vida. Assim os encontrámos e assim os deixámos, correndo em silêncio os quilómetros que encontrámos, seguindo na estrada como um barco fantasma que traça a sua rota de sempre.
Subimos, subimos, subimos, até a estrada acabar e ficámos então a sós com a imensidão da terra e da paisagem. A lua, que se queria cheia, era nova naquela noite. Suficientemente nova para roubar a luz que te aliviaria a alma naquele instante.
Quando saíste do carro, ficaste como que assombrado. Paraste, imóvel e aparentemente alheio, como se estivesses a ver para lá da escuridão. De repente, arrepiaste-te e quiseste ir embora. Eu insisti para ficarmos um pouco mais, certa de que te faria esquecer esse breve sinal de frio. Tonta cabeça a minha que não vi o que estava na minha frente!
Ao primeiro arrepio, seguiu-se a sombra de uma escuridão estranha, que se apoderou da paisagem e da noite, parecendo engolir a terra. Por momentos, ficaste parado no vazio, a tremelicar compulsivamente. Antes que eu te perguntasse o que tinhas, entraste no carro e durante uns segundos, talvez milésimos, remexeste no saco que trazias contigo desde manhã cedo. Foi então que saíste do carro, olhaste para mim e disparaste.»
Lídia Bulcão, in Avenida Marginal de 31/07/2009
4 comentários:
Cara Lídia,
Li seu poema do espelho. Além de sua beleza - o final é magnífico -, senti um diálogo grande com meu "Soneto aos cinquenta anos" (Set/2009). Confira, quando puder.
A ilha que aparece no poema "O barco" foi a que deu origem ao poema. Fica na Urca, na cidade do Rio de Janeiro. E o sentimento era aquele: olhá-la e sonhar.
Visite também meu blog de contos, linkado nos outros dois anteriores.
Tenho uma grande felicidade em conhecê-la e poder conversar. Se desejar, deixe mensagem, direto no endereço literaturaemvida@gmail.com.
Eliane
Olá!
Muito bom excerto.Sentimo-nos mesmo nessa noite,nesse carro,o ser disparatando...
Muito bem escrito.Ficamos mesmo preso á história.
Aproveito e reitero um convite:
Participe na Blogagem de Novembro do blogue www.aldeiadaminhavida.blogspot.com
O tema é: O meu Magusto.
Basta enviar um texto máximo 25 linhas e 1 foto para aminhaldeia@sapo.pt
Participe!
Jocas gordas
Lena
Eliane,
Vindo de alguém que domina a literatura, o seu elogio tem um valor acrescido:)
À Helena,
Obrigado pelas suas palavras e pelo convite. Passarei pela "sua aldeia" assim que possível.
Uau! Esse final me surpreendeu.
Belo texto, que toma-nos de imediato.
Bjs e inté!
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