quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Dias de temporal e de afectos sentidos


Perdida por entre temporais de água e ventos de gelo, aproveito para viver o que a ilha tem de melhor para oferecer: a simpatia das gentes, o afecto dos lugares amados, o calor dos amigos e o conforto da família. Por estes dias de quadra festiva, a Internet é quase um lugar distante. E até isso, de vez em quando, sabe muito bem.
Foto: Baía de Porto Pim/ Autor desconhecido

Retrato de um homem que desfiava grãos de areia

«Por entre os dedos das mãos desfias contas de areia, dourada como os infindáveis sonhos que te invadem o pensamento, negra como os fugidios desejos que te atrofiam o coração. Desfias um punhado atrás do outro, numa sequência interminável que não se limita a matar o tempo, mas antes a escoá-lo numa rede minuciosa, construída para não deixar passar pedaço algum de coisa nenhuma. Desfias e voltas a desfiar, com a concentração que se exige a uma nobre tarefa, entregue só a quem não tenha medo de respingar o pedaço de praia deserta que outros frequentam.

És um homem submerso. Pela água, pela vida, pela realidade. Nasceste com o azul no olhar, mas deixaste que a negridão te consumisse a alma com a velocidade das coisas de outro século, vagarosa e demoradamente.

Enquanto os dias pesados te escorrem por entre os dedos, gastos pela vida e coçados pelo mar, vês em cada grão de areia o que podias ter sido e não foste. Analisas cada hipótese de caminho não percorrido com a minuciosidade das coisas programadas, esquecendo por momentos que o trajecto da hipótese é nada mais do que a queda perfeita no imenso areal onde ontem foste um menino feliz.

Olhas a areia como se olhasses a perfeição. Como se dentro de cada grão encontrasses o sumo da vida que em vão procuraste no fundo do mar, onde as rochas e os corais se confundiam com os seres humanos e os humanos pareciam seres deslocados, forçados a entrar nesse teu mundo encharcado e triste.

Agora, passas os dias à porta do café, sentado de frente para os sonhos dos outros e de costas viradas para esse mar, onde em tempos te achaste por inteiro e depois te perdeste, quiçá para sempre.

Passaram muitos anos desde a última vez que sentiste na pele o rebentar das ondas. Já não mergulhas, nem ousas sequer passear na tranquilidade da maresia. Dizem que foges da água e de tudo o que ela representa.

Sentado na soleira da porta, passas os dias na companhia da barba branca que esconde o teu sorriso amarelecido. A tua pele está encarquilhada e as costas curvadas, mas o olhar carrega ainda o peso da água que um dia te desaguou no peito.

Já não desfias contas de areia, nem vasculhas os grãos que não conseguiste segurar quando buscavas os teus momentos cintilantes. Hoje, desfias apenas garrafas de cerveja, umas atrás das outras, como se nelas fosses encontrar as respostas que não encontraste no mar.

Continuas sem ligar a quem passa na rua e a não falar com os amigos de outrora, mas por toda a ilha se ouvem histórias tuas. De vez em quando, até há quem diga que te voltou a ver no fundo do mar, mergulhado nos teus anseios mais profundos, perdido por entre corais e cores brilhantes.

Não sei se são apenas histórias de mergulhadores ou quase alucinações, mas todos juram que desfiavas grãos de areia, sentado na escuridão que encharca o fundo do mar.»
Lídia Bulcão, in Avenida Marginal de 18/12/2009

domingo, 20 de dezembro de 2009

A caminho do regresso

Hoje é o dia do regresso. Não ao blogosfera, mas à ilha. E enquanto não chega a hora desse desejado avião, vou ecoando os versos de José Martins Garcia, que soube como ninguém retratar as ânsias da alma e da saudade.

«Na ilha do regresso os rostos são
Espaços onde cresce o incenso e a faia,
Ali foi a latada, ali o balcão,
Ali foi o regresso. A cor desmaia.

Na ilha do regresso os dias são
Serapilheiras gastas; e os daninhos
Arbustos crescem no que foi portão
E abraçaram as portas dos vizinhos.

Na ilha do regresso ninguém mora,
Nem há quem habilmente a reconheça.
Cercadura de névoa a rememora,
Névoa dia a pós dia mais espessa.»

José Martins Garcia, in "no Crescer dos Dias"

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Num País em que não há pão, todos ralham e ninguém tem razão

O Jornal da Noite que passou hoje na SIC é um bom retrato do estado do País, cuja força produtiva pouco vale ao pé dos insultos parlamentares ou outros casos de faca e alguidar. O que vemos na televisão parece ser o que temos: uns que insultam, outros que perseguem, alguns que chegam mesmo a matar, mas nenhum que queira mesmo resolver os problemas da crise e do desemprego. Parece-me que os antigos é que tinham razão: num País em que não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Personagens de carne e osso

Vejo os corpos como personagens,
que desbravo com o olhar
e compreendo com espanto.

Olho os homens como um livro,
cheio de entrelinhas
e rugas marcadas na alma.

Admiro os rostos do tempo,
cujas linhas recortadas me mostram
páginas de sofrimento.

Lídia Bulcão

A vida segundo Umberto Eco

«Quando interagimos com as coisas da nossa vida, tudo muda. Se nada mudar, somos idiotas.»

Umberto Eco, numa entrevista publicada no jornal I

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Círculo redondo

O mundo é um círculo redondo
que se completa na eterna concidência
das amizades que sobrevivem
às confusas geografias do tempo e do espaço.