sexta-feira, 18 de junho de 2010

Fugiu para uma ilha sem regresso


A morte de José Saramago deixou-me triste. E a tristeza, que chegou repentina, foi-se instalando, com vontade de ficar. Por mais notícias que veja ou comentários que ouça, nada apaga a sensação de ter perdido uma parte de mim.
Sei que os verdadeiros escritores não morrem nunca, porque a sua obra é eterna. Da mesma forma que sei que os homens não são imortais. Mas confesso que nunca sequer equacionei que Saramago um dia se ausentasse de nós, que pudesse fugir para uma ilha sem regresso.
Sempre pensei que o homem por detrás da escrita fosse ficar por aqui, sempre pronto a provocar-nos, a desafiar as nossas dúvidas, a confundir as nossas certezas, a alargar os nossos horizontes. Porque poucos souberam, como ele, ter esse efeito nas gentes de um povo crente e de brandos costumes.
Tantos o amaram quantos o odiaram. Por ser comunista, por ser ateu, por ser provocador, ou simplesmente por não ter medo de dizer o que pensa em voz alta. A mim, arrebatou-me desde que devorei cada pedacinho do seu "Memorial do Convento", estirada no final de uma adolescência nas areias de Porto Pim, as mesmas onde Tabucchi um dia encontrou a sua inquietude.
Nunca partilhei a visão ideológica de Saramago, nem as suas convicções políticas ou religiosas. Mas foi com o seu desassossego permanente que de certa forma aprendi a não ter medo de questionar as evidências e a encontrar as minhas convicções mais profundas - na política, na religião ou na vida. Vai fazer-me falta a sua clarividência humana. A mim e a todos os que acreditam que só os inquietos vão para além de si.

4 comentários:

Mar de Bem disse...

Poucos homens tiveram ousadia e lucidez para pôr em causa o "status quo" intelectual, espiritual, filosófico e sócio-político. Este era um homem com uma serena inquietação, um aprendiz de deus (reparem que escrevo deus com letra pequena. Nada tem a ver com o nosso Deus!!! Atenção, eu não estou a brincar com a fé e crença das gentes como eu!!!). Era um homem intrínseca e infinitamente profundo. Ele conseguia engendrar novas visões de temas serôdios ou já gastos. Ele nunca teve intenção de gozar com as coisas, simplesmente inventava novos olhares profundíssimos sobre essas coisas. É preciso ser-se liberto de preconceitos ou mesmo conceitos, para vislumbrar a grande capacidade que Saramago tinha de revirar tudo e de... dar de novo. Inquietava, sem dúvida. Fazia-nos pensar.

Agora descansa? Não sei. Aquela mente dissipar-se-á inexoravelmente...

A ilha dentro de mim disse...

Sábias palavras Margarida. Também assino por baixo... :))

Eliane F.C.Lima disse...

Lídia,
Ao ler seu texto, minha dor pela perda do escritor, doeu mais. Vejo que você sente pela morte dele o mesmo que senti, quando se foi o nosso Drummond. Alguma coisa como um inconformismo de pensar: "Nunca mais..." Os textos deixados são consolos. Mas, em se tratando de Saramago e Drummond, a gente sempre quer mais.
Eliane F.C.Lima

A ilha dentro de mim disse...

@Eliane,
Inconformismo é a palavra certa...