quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Adeus, Anjo da Guarda


“Vocês têm que a deixar ir!” Por mais anos que viva, não vou esquecer jamais estas palavras, ditas com uma doçura seca, como se anunciasse a coisa mais simples do mundo. Estava na hora, já devíamos saber, a mãe tinha de partir. Mais dia, menos dia, o momento haveria de chegar. Tínhamos de a deixar ir embora, dizia a mulher, como se estivesse a conversar com uma criança, que não deixa a mãe sair para o trabalho.

Quando ouvi aquelas palavras, foi como se as não tivesse ouvido, quase como se o meu cérebro se tivesse recusado a registá-las, por ordem do coração, apertado na dor e na ansiedade da despedida. Mas o coração registou tão bem que tornou mais sofrível os segundos em que olhámos o médico de frente e ouvimos as palavras que temíamos há muito. No íntimo, sabíamos que os intermináveis minutos passados nas urgências tinham sido os últimos da sofrida vida da minha mãe.

Hoje, quando penso na mulher que ajudava a cuidar dela, vejo-a sempre naquela sala de espera, acompanhada pelas filhas, tentando ser para nós o que a minha mãe já então não podia. Naquele momento, ela foi a mão que nos embala a dor e empurra para a frente. Naquele momento, aquela mulher, quase desconhecida para mim, tornou-se parte da família.

Há uma semana, ao receber a notícia repentina da sua doença, voltei a vê-la naquela sala de urgência e a sentir a dor do sofrimento. E só desejei que o seu fosse infinitamente menor do que o da minha mãe.

Ontem, o sofrimento dela acabou. Durou uma semana. Foi muito pouco para as filhas, que nem tiveram tempo de digerir a primeira notícia. Mas foi com certeza mais do que suficiente para ela, que durante anos viu de perto a dor dos outros, que cuidou de muitas vidas até à exaustão.

O Anjo da Guarda da minha mãe partiu com a missão cumprida. Que descanse em paz!

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O cinema que dá vida à cidade da Horta


A partir de hoje e até domingo o cinema vai dominar a vida da pacata cidade da Horta, com o arranque da quarta edição do Faial Film Fest, o Festival de Curtas da Ilhas que começa a tornar-se um caso sério no meio cinematográfico.

Criado pelo Cineclube a Horta para estimular a criação e a produção local de filmes, o evento ousou ir mais longe e atravessou fronteiras, começando agora a colher os frutos da sua ousadia com o reconhecimento a nível nacional e internacional.

A presença do realizador brasileiro Fernando Meirelles e a estreia nacional do seu polémico filme "Blindness", inspirado no livro de Saramago, será provavelmente o ponto mais alto da edição deste ano, mas não será o único. A homenagem ao realizador português Fernando Lopes e a ante-estreia do seu último filme "O meu amigo Mike ao Trabalho" promete também dar que falar.

Porque a ousadia é a pedra de toque do Faial Film Fest, a organização foi mais longe e este ano faz arrancar o certame com uma homenagem póstuma ao escritor picoense Dias de Melo, que contará com depoimentos de Victor Rui Dores e Sidónio Bettencourt. Será portanto um Festival de Curtas que dá espaço a outras formas de arte, já que alguns eventos musicais e outras acções paralelas vão também ocupar uma parte importante da programação.

Mas como as verdadeiras ousadias só o são porque desafiaram e venceram, parabéns ao Cineclube da Horta, que com este sucesso dá uma chapada sem luva aos responsáveis pela Câmara Muncipal da Horta, que mais uma vez não deram qualquer apoio financeiro a um evento que projecta bem alto o nome da cidade da Horta.

domingo, 26 de outubro de 2008

A liberdade vem de barco


«Sentada por entre uma conversa de saudade, uma amiga picoense constatava o seu espanto pela última moda nas ilhas do Canal. “Agora, toda a gente tem um barco!”, dizia ela, parecendo incrédula por se gastar tanto dinheiro numa vedeta ou num semi-rígido. E tudo só para ir dar uma voltinha ali pela costa ou ir à pesca ali ao largo.

Para a minha amiga, economista de formação, esta moda é apenas mais um sinal do consumo desenfreado de uma sociedade cada vez mais mergulhada em dívidas e muito pouco preocupada em pagá-las.

À primeira vista, o raciocínio dela pareceu-me lógico. Não faz muito sentido investir tanto dinheiro num barquinho para usar só ao fim-de-semana, especialmente quando, na maior parte dos casos, ainda se está a pagar as prestações da casa e do carro ao banco.

O argumento, dizia eu, parecia-me lógico, mas só por si não me convenceu e fiquei a matutar naquilo. Afinal, também eu, que nunca fui de seguir modas, há muito que sonho ter um barquinho que me leve por esse mar adentro, em busca de aventuras e saudades. Claro que nunca passou de um sonho, como muitos outros que nos vão alimentando os desejos e fazendo seguir com a vida. Mas ainda assim é um sonho, que cada vez mais me parece ter origens na ilha que há dentro de mim.

Desconfio mesmo que há algo mais por detrás desta dita moda, que rapidamente tem enchido os ancoradouros das marinas açorianas. E quanto mais penso nisso, mais tenho a certeza que não é por acaso que todo o ilhéu alimenta essa ânsia de possuir um barco só seu.

Ainda que nos dias de hoje poucos deixem a ilha por mar, o caminho marítimo continua a ser a estrada que todos os ilhéus desejam trilhar. E aí o barco é, sem dúvida, o elo que faz a ponte com o mundo exterior.

Não digo que o barco represente apenas “a vontade encapuçada de partir, de cortar as amarras que prendem o açoriano ao cárcere ilhéu”, como lhe chamou Carla Silva Cook, no seu livro “O Menino Escreve – Infância e Adolescência no Universo Nemesiano”. Embora sinta que um simples barco pode ser a viagem para outros caminhos, não o vejo apenas como um “modo de apartamento da ilha”, ainda que “também de regresso possível”.

Mais do que uma forma “de cortar as amarras” que o prendem à ilha, acho que o barco é uma outra forma de as reforçar. Não porque permite desfrutar intensamente dos privilégios do mar, mas sobretudo porque dá ao ilhéu a liberdade de escolha. É como se ter um barco ancorado no porto equivalesse a ter uma porta de emergência, daquelas que nunca usamos mas por onde sabemos que podemos sair a qualquer momento.

O ilhéu de hoje continua a não querer estar preso no isolamento da ilha, mas também não a quer abandonar. Prefere antes ter um barco e sentir-se livre. Não de partir, mas de ficar.
»

Lídia Bulcão, in jornal Avenida Marginal, 23/10/2008


Crédito Foto: @LBulcao

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Mortalha

O nó do lençol desfaz a minha alma,
que se abre qual linho de uso diário,
esfrangalhado de tanto vestir,
macio de tanto bater e encharcado
no odor da vida que foi.

Lídia Bulcão

Ladaínhas de dor

Rituais se lavraram
e cânticos se entoaram,
ladaínhas de dor
rezadas com afinco.
Tarefa ingrata esta,
limpar o ardor da morte
quando a vida ainda
se sente tão quente.

Lídia Bulcão

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O cheiro da civilização

Ao passar pela feira mensal de Coina no último fim-de-semana, com a sua habitual confusão de trânsito, gentes e chão de poeiras infindáveis, dei por mim a voar para Portobello Market, em Londres. Ex-libris de Notting Hill, Portobello Market é uma mescla de mercado, feira e multiculturalidade.

Há legumes frescos, roupa de qualidade, antiguidades, artigos de decoração, raridades e velharias. Há vendedores de sempre e trocas de mercadorias, tesouros que se exibem mas ninguém compra, velharias que são disputadas e sobretudo muita mistura de gentes e culturas.

São salsichas alemãs com pastelaria inglesa, são frutas frescas e peixe no gelo, são panelas e tachos, baús e cabides, quadros, espelhos, molduras, moedas, selos e vinis. São roupas modernas para o Verão e barracas com artigos em segunda mão. Botas velhas recuperadas, sapatos engraxados e malas encardidas. Há de tudo para vender, logo há de tudo para comprar. E há, sobretudo, gente que tudo procura e ali encontra.

Há cheiros no ar. Há confusão nas ruas, atafulhadas mas transitáveis. As barracas nas laterais dos passeios permitem ao trânsito circular. Mal, mas, ainda assim, circular.

Há conversas e negociações, há confusão, há misturas e há até avisos claros de que os carteiristas andam por lá. Mas não há gritos, não há discussões, não há empurrões.

Há gente, muita gente. Locais, turistas, e de outros regiões da cidade ou do País. Há indianos, asiáticos, africanos, árabes, europeus e até americanos. Mas não há guerra, nem tão pouco se nota o preconceito.

No mercado de Portobello Road há uma mescla de gente e culturas. Mas há sobretudo o cheiro da civilização.

Crédito foto: @LBulcao

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A ilha de Pedro da Silveira

Porque me falta o mar da ilha e os murmúrios das ganhoas
deixo aqui as palavras do mestre Pedro da Silveira,
poeta florentino que tão bem soube descortinar a alma açoriana.




«ILHA

Só isto:
O céu fechado, uma ganhoa
pairando. Mar. E um barco na distância:
olhos de fome a adivinhar-lhe à proa
Califórnias perdidas de abundância.»

Pedro da Silveira, A Ilha e o mundo (1952)/
in fui ao mar buscar laranjas - Livro 1


@GCabaça/ ImagDOP

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O poeta por detrás da figura pública


Muito já se disse e escreveu sobre Francisco José Viegas. Que é escritor, jornalista, cronista, bloguista, homem de cultura e dos prazeres, amante dos livros e dos Açores. Poucos lhe chamam poeta e, sinceramente, não consigo perceber porquê, se é na poesia que mostra a sua veia maior. Resta-me apenas pensar que seja por desconhecimento, por ignorarem ainda as linhas em que o poeta derrama a sua alma. Deixo, por isso, aqui um exemplo, para que conheçam um pouco o outro lado da figura que a televisão tornou pública.






«SE ME COMOVESSE O AMOR

Se me comovesse o amor como me comove
a morte dos que amei, eu viveria feliz. Observo
as figueiras, a sombra dos muros, o jasmineiro
em que ficou gravada a tua mão, e deixo o dia

caminhar por entre veredas, caminhos perto do rio.
Se me comovessem os teus passos entre os outros,
os que se perdem nas ruas, os que abandonam
a casa e seguem o seu destino, eu saberia reconhecer

o sinal que ninguém encontra, o medo que ninguém
comove. Vejo-te regressar do deserto, atravessar
os templos, iluminar as varandas, chegar tarde.

Por isso não me procures, não me encontres,
não me deixes, não me conheças. Dá-me apenas
o pão, a palavra, as coisas possíveis. De longe.»

in "Se me Comovesse o Amor", Quasi Edições


segunda-feira, 13 de outubro de 2008

62 anos de uma vida construída a dois


Ontem, os meus avós maternos comemoraram 62 anos de casados. Isso mesmo, 62 anos de uma vida construída a dois, com todos os altos e baixos que se esperam numa qualquer vida, recheada de momentos felizes e intercalados com outros mais difíceis.
Pelo meio desses 62 anos de casamento, criaram duas filhas, viram nascer quatro netas e conheceram o tardio prazer de um bisneto, sem nunca deixarem de ser um pilar na comunidade que os rodeia. E quando a vida parecia já nada lhes poder ensinar, sentiram a amarga dor de perder uma filha.
Aos 80 anos de idade, os meus avós aprenderam ainda que a vida nos reserva sempre mais do que esperamos dela. E hoje, apesar da dor que não acaba e do sofrimento que não esquece, os meus avós ainda são capazes de sorrir.
Quando vejo o brilho que ilumina os olhos do meu avô cada vez que olha para o bisneto, percebo que a felicidade pode ser uma coisa muito simples. E ao ouvir a transformação na voz da minha avó quando fala com o meu filho ao telefone compreendo que, afinal, a lonjura só nos aparta do que não amamos.

Para eles, o meu amor e a minha homenagem.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Quando a realidade rouba a poesia

Há momentos em que a realidade nos rouba a poesia,
esquartejando as linhas que outrora sonhámos
e devorando os sons que nos guiavam nos dias difíceis.

Leiam aqui o certeiro texto de Pedro Santos Guerreiro,
director do Jornal de Negócios, e percebam porquê.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Inspirador

A ilha não é, nem pode ser, uma prisão para o talento.
Que a história de Rodolfo Vieira seja tão inspiradora
quanto a sua música. Aqui.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Viagem pelo futuro

Vagueio por entre os livros que nunca irei ler, pelos países que não conhecerei, pelos sonhos que não chegarei a realizar. Vagueio tanto que me perco no horizonte daquilo que gostaria de ser. Penso no futuro que chega depressa e na velocidade que não consigo abrandar, como se o tempo tivesse o acelerador encravado e os amortecedores partidos. Sei que o mapa está na minha mão e que as estradas ainda têm escapatórias. Só não sei se serei capaz de trocar o intinerário principal por um atalho desconhecido, ainda que o destino final possa ser aquele que sempre procurei.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

The sea of suspicion



Sometimes, I feel myself a believer. Others, a truly sceptic.
Most of the time, I'm between extremes, in the sea of suspicion.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Para quem procura o compasso certo


Conheço vidas que parecem partituras perfeitas, onde as colcheias e semi-colcheias se baralham tão naturalmente que mais parecem ter sido escritas a partir de um outro mundo. Mas há outras vidas, tão baralhadas e confusas, que parecem não caber numa partitura, onde cada ritmo tem sempre de encontrar o compasso certo. É a essas que dedico este Dia Mundial da Música, na esperança de que um dia consigam fechar os olhos e embriagar-se com os sons da sua própria harmonia.