domingo, 14 de dezembro de 2008

Faial à vista


De partida para a ilha, com o pensamento turvo e o corpo a pedir descanso, evoco aqui a poesia do mestre florentino Pedro da Silveira, que soube como ninguém cantar o Faial e descrever sentimentos que também são meus.

«3. (FAIAL À VISTA)


Ilha: como uma ave melancólica
Vagarosa
Desvelas-te
Num ermo de neblinas.

E é assim como se ela
(não a ilha: a tal ave melancólica)
Emergisse d’um sono
Que não teve começo.

…E é diferente de todas
Esta indecisa,
tantas vezes vivida
primeira manhã de me ausentar.»

Pedro da Silveira, Diário de Bordo, in Fui ao mar buscar laranjas

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A democracia que os açorianos merecem

O ano de 2008 ainda não chegou ao fim, mas vai ficar certamente para a história como um dos mais escandalosos de sempre na Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Depois do caso da estranha troca de presidentes da ALRA, ontem à noite o mais improvável aconteceu, quando pela primeira vez na história daquela instituição o programa do Governo foi aprovado sem ser votado pelo Parlamento. A notícia é chocante, mas infelizmente é verdadeira e legal. O novo presidente do Parlamento açoriano estreia-se da melhor forma e prova que a traição não é a sua única virtude. Mais de 30 anos depois do 25 de Abril, esta é a democracia que existe nos Açores. E a ver pela abstenção nas últimas eleições, é de facto a democracia que os açorianos merecem.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

As ilhas, segundo Miguel Sousa Tavares

Terminei hoje a leitura de "Equador", o magnífico livro Miguel Sousa Tavares, que devorei numa semana de leitura vertigionosa, vivida com a intensidade dos grandes romances. Sei que o devia ter lido há muito, mas estes quase quatro anos de espera na carregada prateleira cá de casa só fizeram bem, porque me permitiram esquecer os ecos do muito que li e ouvi sobre ele.
Terminei as suas 518 páginas absolutamente exausta, mas estranhamente reconfortada com o trágico final. Ainda no processo de digestão de tão densa obra, retive já uma frase que não esquecerei jamais.
«As ilhas são lugares de solidão e nunca isso é tão nítido como quando partem os que apenas vieram de passagem e ficam no cais, a despedir-se, os que vão permanecer. Na hora da despedida, é quase sempre mais triste ficar do que partir e, numa ilha, isso marca uma diferença fundamental, como se houvesse duas espécies de seres humanos: os que vivem na ilha e os que chegam e partem.»
A estas intensas palavras de Miguel Sousa Tavares, atrevo-me a acrescentar que falta uma terceira espécie: a dos que não conseguem deixar a ilha, apesar de estarem sempre a chegar e a partir. Essa é a minha espécie.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Pensar a vida a escrever

Reli há pouco, com prazer, a entrevista do escritor V. S. Naipaul (Prémio Nobel da Literatura em 2001) ao Suplemento P2 do Público, publicada a 26 de Novembro último, e quero aqui reter uma frase que me marcou acima de todas as outras: «Não é a viagem sozinha que nos muda, é o acto de a escrever, de pensar. Muitas vezes não sabemos o que pensamos sobre certa experiência até escrevermos sobre ela.»
Falando sobre a imperatividade do escritor viajar para conhecer o mundo, Naipul acaba por descrever a escrita como uma forma de clarificar a vida e os sentimentos que por vezes nem sabemos que temos. É como se só vivessemos plenamente aquilo sobre o qual escrevemos.
A ideia pode parecer disparatada para muitos, mas para mim faz todo o sentido. Mais do que pensar enquanto escrevo, eu penso a escrever. E sei que quando me sento a escrever sobre as experiências que vivi esse passado parece ganhar vida própria. No fundo, é como se eu própria só vivesse enquanto escrevo. Talvez por isso não hesite em dizer que se não escrevi, é porque não vivi.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Contagem decrescente


O Natal ainda vai longe, mas eu já entrei em contagem decrescente. Não para a festa, mas para o regresso ao porto de todos os abrigos. Daqui a uma semana estarei de volta à ilha, para as merecidas férias natalícias, junto às raízes e ao calor da família. Até lá, o tempo será medido pela importância dos dias em falta. Sei que as horas vão parecer minutos quando quiser agendar nelas todos os compromissos inadiáveis. Sei que os segundos vão parecer horas quando as memórias ficarem à deriva. Sei que vou arrumar as malas à última da hora e dormir mal na última noite. E tenho a certeza que quanto mais perto estiver daquele pedaço de encantamento maior será a vontade de sucumbir à vertigem da saudade.

Crédito da foto: Mário Leal

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Manhãs azedas


Não suporto este frio que faz das manhãs um calvário desnecessário. Ainda mal despertei e já me entra nos olhos com a ardência de uma cebola arisca, que insiste em mortificar a sensibilidade alheia. Do lado de dentro da janela, insisto em rejubilar com esse céu azul, banhado pelas águas macias do rio e recortado pelo verde negro da paisagem. Mas mal abro a porta da rua, entro numa guerra desigual e perco cada batalha diária para essa temperatura azeda, que insiste em cortar-me a pele ao primeiro contacto e penetrar-me nos ossos antes que eu consiga dar um passo. Respirar o ar matinal tem sido, para mim, uma tarefa complexa, rodeada de cuidados extremos e panaceias imensas. E como se não bastassem as alergias da estação, ainda tenho de aturar esse frio gélido, que insiste em fazer do Outono um Inverno cruel. Por estes dias, amaldiçoo estas estações trocadas e todos aqueles que só as sabem emaranhar.

Monges rendidos ao mercado puro

Enquanto os grandes países rodopiam ao sabor da crise económica e o PCP rejubila com as dificuldades do povo (porque prova o fracasso do capitalismo, nas palavras de Odete Santos), os Monges do templo de Shaolin rendem-se à economia de mercado. A notícia do Público online só prova que nem em tempos conturbados o budismo zen entra em stress.