quinta-feira, 10 de junho de 2010

É tempo de parar de virar a cara!

António Barreto pôs o dedo na ferida, ainda não cicatrizada, que Portugal teima em esconder. E tem toda a razão. É tempo do País parar de virar a cara aos farrapos do Ultramar e de fazer de conta que não aconteceu. Em homenagem a todos os ex-combatentes que continuam a lutar para ser reconhecidos e, em particular, ao meu pai, também eu assumo aqui as minhas feridas. Na esperança de que quem me leia consiga um dia assumir as suas.

FILHA DE UM ATIRADOR

Sou filha de um atirador.
Filha de um homem que matou
mais do que consigo imaginar.

Sou filha de um atirador.
Enlouquecido pela dor que explodiu nele,
depois de ter explodido sobre os outros.

Sou filha de um atirador.
Filha de um homem amargurado,
estragado pela guerra, desvirtuado pela paz,
quebrado pela vida que não conseguiu ter.

Sou filha de um atirador.
Escrevo-o sem saber o que digo,
sem poder contar as vidas que tirou,
nem as circunstâncias em que o fez.

Sou filha de um atirador.
Por mais que o escreva, não o sinto.
Não o vi apontar, não o vi atirar,
não vi nenhum corpo cair,
nem sequer o sangue amanhecer.

Sou filha de um atirador.
E tal como o resto do País,
fecho os olhos, viro a cara,
e faço de conta que não aconteceu.

Lídia Bulcão

1 comentário:

Rogério Paulo Pereira disse...

Lídia,

Como a compreendo.
Perdi o meu pai na Guiné há 37 anos, em 1973.
A dor não passa.

RP