sábado, 11 de setembro de 2010

Enfrentar as vergonhas e resgatar as glórias

Caminhando pela avenida numa destas noites maravilhosas que o final de Verão ainda nos vai proporcionando, dei por mim a relembrar as palavras de um turista amigo: «Isto é, ou não é, uma cidade portuária?» A pergunta trazia água no bico. «É que não vejo "casas de meninas" em lado nenhum!», dizia ele, com um sorriso maroto, argumentando que qualquer cidade portuária que se preze tem, ou teve, a sua casa de "meninas".


Goste-se ou não, a verdade é que ele tinha a sua razão. E se hoje não se conhece qualquer casa desse género na cidade, a verdade é que em tempos idos a Horta terá tido as suas “meninas” circulando pelos bares da noite ou escondidas no velho “Barco do Amor”, entre outros locais menos próprios para a moral e os bons costumes de qualquer terra que se preze.


Hoje, olhando para as fachadas da nossa cidade, não há nada que nos faça ecoar esse tempo em que os marinheiros escalados na cidade frequentavam ruas ou casas consideradas menos próprias. Contudo, isto não significa que não existiram, mas apenas que se há coisa que a Horta soube bem esconder foi esse lado menos glamoroso de uma cidade portuária.


Até aqui, menos mal. O problema é que os mesmos que deixaram cair no esquecimento o lado menos próprio de uma cidade portuária, estão também a deixar desaparecer o outro lado desse passado, bem mais rico e merecedor do olhar atento de todos quantos nos visitam, mas cada vez mais enterrado no esquecimento dos anos e das vozes que vão desaparecendo de entre os vivos.


Se ainda houver dúvidas, falo das histórias e dos feitos de uma cidade que foi grande muitas vezes e quase sempre graças ao mar, desde o tempo das caravelas aos navios baleeiros, passando pelos cabos submarinos e pelos hidroaviões, sem esquecer os muitos exércitos que nela descansaram as suas frotas marítimas ou até mesmo os milhares de iates que a escalam ano após ano. Falo do passado de uma cidade que soube usar o mar para ultrapassar as suas fronteiras e as dos outros, mas não está a saber cuidar do seu património marítimo-cultural para nele edificar um futuro de raízes sólidas.


Ainda há pouco tempo o arqueólogo José Bettencourt, do Centro de História de Além Mar da Universidade Nova de Lisboa, dizia nas páginas do “Tribuna das Ilhas” que os vestígios arqueológicos da baía da Horta “são únicos a nível nacional”, referindo-se a um achado recente que se calcula remontar ao naufrágio de um navio inglês no início do século XVIII. E, a propósito, o arqueólogo lembrava o óbvio: que a cidade da Horta precisa, e urgentemente, de um discurso museográfico ligado ao mar.


«À excepção da fábrica da Baleia, não conheço na Horta nenhuma instituição museográfica ou com exposições sobre o passado marítimo da cidade, e acho que é uma falha em termos de produto, quer para consumo interno, quer para vender para o exterior», afirmava então o arqueólogo. E as suas palavras fazem tanto sentido que não podem ser ignoradas, sobretudo por quem tem o dever de preservar e divulgar a cultura que é de todos nós.


Não quero aqui discutir questões políticas, técnicas, orçamentais, ou outras que tais em torno da criação de um futuro museu (ou museus) ligado ao passado marítimo da cidade da Horta, mas apenas deixar mais um alerta para que a oportunidade não volte a ser desperdiçada.


O caminho para o futuro pode e deve ser feito a partir do passado, mas antes é preciso reconhecer a sua importância e mostrar disposição para o preservar. Quando estes dois factores finalmente se conjugarem, tudo o resto será uma questão de pormenor.


À semelhança do que acontece com o património geológico e ambiental do Faial, também o seu património marítimo está recheado de feitos dignos de registo e edifícios com história, que merecem a devida preservação e divulgação, contribuindo inclusive para contextualizar a existência de uma cidade que pelo mar se tornou “a maior cidade pequena do mundo”, como em tempos lhe chamou o poeta Pedro da Silveira.


E se pelo caminho tivermos também de enfrentar algumas vergonhas e revelar aos nossos filhos onde ficavam as casas de “meninas” desta mítica cidade portuária, será certamente um baixo preço a pagar pela certeza de que os nossos verdadeiros feitos vão ficar de herança às gerações futuras e a todos os visitantes que um dia ousem desembarcar na Horta.


Lídia Bulcão, in Tribuna das Ilhas, 10/09/2010


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