sábado, 31 de julho de 2010

A mulher que desenhava navios

«O lápis que seguras entre os dedos carrega sinais de outros tempos. Carcomido pelo uso e marcado pelos dentes, parece deslocado nessas tuas mãos, longas e macias. E, contudo, a sua ponta corre ligeira, rabiscando a folha de baixo para cima, de cima para baixo, com uma velocidade impressionante. Tão impressionante quanto a certeza do traço, que vindo do nada se materializa em linhas esguias e perfeitas, compondo barcos e frotas de navegação.

Ver-te desenhar é como assistir a uma peça de teatro, cujo enredo vai ganhando intensidade à medida que se aproxima a tensão do final. Debruçada sobre o papel, és a actriz de um monólogo em crescendo, dominada pela inspiração que escorre dos teus dedos e te mantém prisioneira até que a sombra náutica esteja completa.
É assim todos os dias por detrás daquela janela virada para o mar. Do lado de fora, o movimento de uma baía agitada pelo constante entra e sai de navios com mil destinos. Do lado de dentro, um quarto vazio de cor e movimento, dominado pelo estirador onde passas os dias sombreando os barcos que se amontoam nas paredes, sem que nenhum deles pareça pronto para navegar.

Sem dúvida que percebes da arte. Os teus desenhos mostram que dominas o traço, a escala, a perspectiva, os pormenores e, sobretudo, as sombras. As sombras que enchem as folhas de papel e parecem saltar para a vida real, marcando o traço dos teus desenhos de forma tão constante quanto perturbadora.

Há qualquer coisa nas tuas sombras que cheira a obsessão, a compulsão de mente perdida noutro mundo. Um mundo que não se vê dessa janela, aonde o tempo se divide entre uma realidade movida pelas ondas e outra mergulhada num silêncio ensurdecedor, só quebrado pelo correr do teu lápis enquanto verte o negrume da inspiração.

Espreitando pela porta entreaberta, não consigo ver as décadas do teu rosto. Mas se as visse, repararia que as rugas são pormenores insignificantes e a pele apenas o prolongamento do teu porte, esguio e altivo como outrora também terás sido.

Dizem que o teu olhar rasgado fez muitos homens perder a cabeça e que o seu azul intenso é tão perturbador quanto as sombras do teu lápis ligeiro. Acredito que seja, embora nunca te tenha olhado de frente. Não que não quisesse, mas nas mil vezes em que te espreitei pela soleira da porta não tive a sorte de te ver levantar os olhos do estirador. Na verdade, acho que nem sequer deste pela minha presença, como provavelmente não darás pela de ninguém que não te seja realmente importante.

Confesso que desconheço as razões da tua existência e o motivo pelo qual os teus dias são feitos de navios sombreados. Mas habituei-me a parar para te ver desenhar todas as vezes que passo pela tua porta, quase sempre entreaberta para o mar. Sem qualquer explicação aparente, sinto-me preso no desfiar das tuas sombras, quiçá intrigado pelos mistérios que encerra essa frota proibida de navegar.

Enquanto te vejo a desenhar navios compulsivamente, imagino que são pequenas partes de um só, quiçá daquele que te abandonou há muitos anos em cima de um cais, levando para outro mundo a vida que ousaste desejar.

Olhando as sombras que minuciosamente trabalhas, suponho que sejam o peso que carregas há décadas nesse coração fechado de mulher perdida. E isso é quanto baste para despertar em mim a imensa vontade de dar um passo para te falar.

Hoje, esteve quase. Mas antes que o meu corpo se atrevesse a subir o degrau, uma rajada de vento vinda do nada roubou-me a tua visão. Com o rosto colado na porta entretanto fechada, visto o peso das tuas sombras como se fosse meu e por momentos sinto-me preso no espaço daquela soleira, onde há meses crescia a necessidade de te falar.

Sinto de novo essa rajada e percebo que não é mais do que um vento ligeiro e sem educação. Imprevisível e irreverente, mas nem por isso mais teimoso do que a minha vontade de dar o tal passo para te falar. Quis o destino que não fosse hoje, nem ontem. Talvez amanhã, ou depois. Sei que um dia destes será. E só descansarei no momento em que te confessar a minha própria obsessão.»

Lídia Bulcão, in Avenida Marginal nº7, de 30/07/2010

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